segunda-feira, julho 17, 2006

Sóis que tornam o mundo melhor

Em tempos que já lá vão, um homem de antigamente chamava a atenção para «Sol Negro», de Virgínia Rodrigues e linkava uma recensão de T. C. Clamote, publicada na «PHONO» (uma webzine escrita «por pessoas que gostam de música», muito recomendável «para pessoas que gostam de música»). Na altura, nunca ouvira Virgínia Rodrigues, nem tão pouco me era familiar o nome. O texto valia por si só:

O facto de raça ser um conceito nascido de uma selecção arbitrária de traços humanos para justificar assimetrias que historicamente serviram propósitos de dominação que aí também se ancoraram para se legitimar, é um dado histórico fundamental, mas não suficiente para desvanecer a persistência dos efeitos que a organização da vida social e da percepção em redor do conceito suscitam. Isto porque um conceito social não precisa de formas de validação científicas para operar: basta-lhe que haja gente a atribuir-lhe crença de validade, e pode perdurar para sempre, por muito que se clame que essa validade é nula. Daí que as estratégias de gente e grupos para contestar esses efeitos possam ser várias, contraditórias ou até conflituantes. Uma delas é assumir que as diferenças que esses conceitos erguem estão enraizadas em terra de séculos, separaram mundos sociais, e para ultrapassar as dominações que sustentam tais divisórias há que trabalhar com essa diferença demasiado sedimentada para poder ser ignorada e partir do zero. Que é como quem diria: se nos fizeram outros, pois sejamo-lo com orgulho. Se é a melhor estratégia, é matéria de discussão, que aqui não cabe. Mas qualquer estratégia pode ser mais valiosa se sempre for aliada a algum bom senso, que sempre faltou aos mais elaborados, rígidos, e geralmente lamentáveis, programas de transformação social.

Sobre o álbum, Clamote acrescentava, ainda no mesmo parágrafo:


E quando tal estratégia se corporiza, por exemplo, na beleza plácida mas decidida de um objecto artístico destes, algum crédito já arrebatou.


Os restantes parágrafos continuavam a prometer uma obra que era necessário ouvir. Tentei, em vão, comprar o álbum. Há pouco tempo, um amigo ofereceu-mo. A curiosidade e a expectativa eram grandes. A primeira entrada, à capela, não mexeu logo comigo. De início, confesso, estranhei. Não desisti, claro, e não demorou a que me deixasse envolver e, pouco depois, a sentir aquela cumplicidade que há com a música de que gostamos muito.

Quanto ao melhor, diz T. C. Clamote:
Mas genial, genial, são duas faixas. Se o resto prima pelo mesmo bom gosto e estratégia, a «Noite de Temporal» e o «Negrume da Noite» são os sóis negros por excelência deste disco.

Tudo está lá dito e muito bem dito. Gostava de discordar e teria a pretensão de acrescentar alguma coisa, mas não posso. São duas faixas belíssimas, que impressionam. Arrisco apenas numa hierarquização, «Noite Temporal é linda, mas o «Negrume da Noite» faz-me chorar, rir e dançar. E posso ouvi-la vezes sem conta, porque não tenho medo de a esgotar.

Fica aqui o que lá não cabia, mas que vale a pena, mesmo sem o som que acompanha o poema:

O negrume da noite
Reluziu o dia
O perfil azeviche
Que a negritude criou

Constitui um universo de beleza
Explorado pela raça negra
Por isso o negro lutou
O negro lutou
E acabou invejado
E se consagrou

[...]

Agradeço ao homem de antigamente, ao T. C. Clamote e ao amigo que me ofereceu o álbum.

3 comentários:

Anónimo disse...

Bom, do triunvirato que por formas diversas configurou a senda de lhe chegar ao ouvido tal melopeia, não poderei falar do que ajuízariam o seu amigo e o cavalheiro com quem partilho a morada nutrida de inefáveis vapores de antanho. Mas pela minha parte, e do que me recorda a audição, creio que concordaria consigo: o Negrume da Noite ainda é capaz de ser a mais suculenta faixa do disco.
E agradecimentos, claro serão sempre mais que desnecessários pela minha magra contribuição. E não o fossem, estariam mais que pagos pelas folhas que começam a brotar deste seu caule. Siga a dança

Pé de Tulipe disse...

Nem tão magra a sua contribuição, caro Julinho. Pois sem ela não chegaria à Phono e talvez não desse uma segunda oportunidade ao álbum que me foi oferecido. Agradeço o incentivo, tentarei seguir a dança, como puder, umas vezes será mais lenta, outras mais acelerada, uma vezes mais harmoniosa, outras nem por isso...

Anónimo disse...

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