segunda-feira, dezembro 04, 2006

Divagações entre calor e trovoada

Fazer trabalho de campo na área das ciências sociais tem sempre muito mais que se lhe diga do que as aulas de metodologia da pesquisa deixam antever. A verdade é que ao investigador - isso aprende-se nas aulas - não são permitidas grandes exigências, isto é, o entrevistado é alguém que merece todo o respeito, que dá e dá porque quer, perde tempo connosco, atura as nossas perguntas, às vezes agradáveis, tantas vezes nem por isso. A ele devemos os resultados da investigação (e salário e graus académicos). Cabe ao investigador prender a atenção do entrevistado, assim como lhe caberia uma série de coisas, que tantas vezes fogem ao seu controlo. Por exemplo, a situação ideal de entrevista é aquela que não está sujeita a interrupções de terceiros ou de qualquer ordem. Alguns investigadores consideram a casa do entrevistado o lugar perfeito; outros defendem que o entrevistador deve procurar o espaço onde o entrevistado se sente bem e passa grande parte do tempo. Neste caso, deve deslocar-se nem que seja para o meio do mato. Esta segunda é, no meu entender, bastante mais razoável. Por vezes, está longe do controlo do investigador ficar a sós com o entrevistado. Desconfiança, insegurança ou curiosidade de familiares, vizinhos, colegas ou amigos conduzem a situações de entrevista com companhia (mais ou menos numerosa). Não compete ao investigador expulsá-la e nem sempre é desejável convencê-la a sair. É preciso avaliar sensibilidades. Quem faz trabalho de campo sabe que é fácil ver-se envolvido em situações caricatas, às vezes complicadas, mais frequentemente, cómicas ou embaraçosas. Quem faz trabalho de campo em equipa percebe que pequenos episódios facilmente se transformam, entre colegas, em anedotas de trabalho de campo, recontadas durante anos a fio. Não há muito tempo, andava eu num bairro do norte de Moçambique, dei comigo na boleia de uma bicicleta, gentilmente oferecida por um dos meus entrevistados. Ele pedalava, eu ia sentada na parte de trás. Ainda que eu quisesse (e confesso que queria), não havia como ter recusado sem ser pateticamente indelicada. E lá fui eu, relembrando os tempos em que brincava com os meus primos mais velhos antes de aprender a equilibrar-me nos pedais, sem saber muito bem onde devia colocar os pés, e com a vizinhança a indagar se o dono da bicicleta teria arranjado uma namorada estrangeira. Nenhum dos meus colegas me viu, ou isso seria anedota até ao ano 2049. Tenho muita pena. Sabe-se bem que isto dos investigadores também se mede ao episódio. Há quem ache que é à publicação, mas esses são os ingénuos. Hoje, sem saber como, vi-me dentro de um carro de polícia, com pessoas a tratarem-se por «chefes» e «sargentos». Não estava prevista a boleia, nem estava no meu programa tanto calor. Um sargento, sentado ao meu lado, perguntou se abria o vidro ou se havia ar condicionado. Explicaram-lhe que não havia dinheiro para o combustível, que abrisse o vidro. Em resposta à indisciplinada baforada de ar quente que invadiu o nosso ar, o meu companheiro de assento desabafa: «Hiii [um hi, que só quem alguma vez esteve cá sabe identificar], estas janelas, afinal!, entra um vento que parece sair do forno do pão». E foi a frase mais acertada do dia, porque ninguém pode acertar mais em cheio quando está a trabalhar e os termómetros rondam o número 40. E é por isso que eu gosto de fazer trabalho de campo, porque há sempre coisas que valem a pena. Ah, a entrevista foi uma grande confusão, com gente a entrar e a sair, mas consegui informação razoável e, ainda, dar conta do relacionamento entre as pessoas. Claro, podia sempre ser melhor. Anoiteceu e está a chover. A trovoada acalmou. Acho que o pão já coseu e o forno está só a meio gás.


Nota: Pensei em escolher uma fotografia para juntar a este post, mas não conseguia escolher uma que ilustrasse o que está por trás das divagações: em trabalho de campo, as situações são sempre diferentes.

1 comentário:

Anónimo disse...

Bom post! Creio que o melhor de todos os teus bons. Não alinhes, muito, nessa de uma boa fotografia valer mais que mil palavras... No presente caso, e deixa-me humorar, (já que em tempos me gabaste tal faceta...) quando muito uma caricatura: um termómetro a fluír, efervescentemente, pela sua cabeça e um simpático agente, mesmo mostrando toda a sua careca, fazendo do seu boné um simpático leque, esperando o teu amável sorriso.
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SIM, pelo sim, claro que sim!