segunda-feira, agosto 14, 2006

Depois das quatro quadras, as notas soltas

Angoche pertence ao distrito de Nampula. Em tempos, foi uma cidade importante. Hoje, com o porto parado e as fábricas encerradas, o desemprego afecta a maioria da população e a cidade parece esquecida pelo governo central. Tem uma história riquíssima e a política local mostra dinâmicas muito próprias. É uma cidade linda, onde as pessoas têm tempo para nós. E cada vez me é mais difícil estudá-la.

1. Pela segunda vez, vejo-me em Angoche a fazer trabalho de campo. Eu própria estou cansada do meu discurso gasto de quem não vai ali para resolver problemas. Vai para quê? Começo a questionar-me. Sempre a expectativa de promover melhorias numa estratégia de longo prazo. A ideia é conhecer e dar a conhecer (alguma) realidade. A quem se interessa e a quem lê, claro, e isso é sempre pedir demais a quem tem tantas responsabilidades.

2. Analisamos estratégias de resistência. Para além dos espaços delineados para análise, há aqueles em que vivemos e em que diariamente essas estratégias nos tocam. Somos de fora, saímos de Maputo, chegámos de carro, claramente temos mais e podemos significar uma oportunidade, seja para melhorar o ano, o mês ou, simplesmente, o dia. Os pedidos vão desde o caril para o jantar, à bicicleta, à boleia, ao caderno para a escola, à caneta, ao emprego em Maputo, ao computador portátil. Vão desde a manhã, até à noite. As histórias contadas são muitas, umas mais verdadeiras do que outras.

3. Ibrahimo é um jovem que conheci em 2003. Viajou de longe, porque soube que estávamos ali. Não há dia em que eu chegue a casa, cansada, a ansiar por sossego, que não esteja à minha espera, com uma história e um pedido. Porque os professores só passam quem dá dinheiro, porque está a sofrer, porque não consegue. Um dia, esperava-me há horas, vem a velha história, quer o meu número de telefone. Antecipo os bips infinitos que vou receber. Estou cansada, não acredito no que me conta, irrito-me com o abuso de confiança e o papel de vítima. Dou-lhe o número de telefone e não mais que os indispensáveis minutos para o efeito. Vou descansar! Parece triste e eu penso na paz de casa que acabo de conquistar.
À noite, antes de dormir, escolho, ao acaso, no computador, uma música. Era o Seu Jorge e dizia assim:

Se eu pudesse, eu dava um toque em meu destino
Não seria um peregrino nesse imenso mundo cão
Nem o bom menino que vendeu limão
E trabalhou na feira pra comprar seu pão
Não aprendia as maldades que essa vida tem
Mataria a minha fome sem ter que roubar ninguém
Juro que eu não conhecia a famosa funabem
Onde foi minha morada desde os tempos de neném
É ruim acordar de madrugada pra vender bala no trem
Se eu pudesse eu tocava em meu destino
Hoje eu seria alguém
Seria eu um intelectual
Mas como não tive chance de ter estudado em colégio legal
Muitos me chamam de pivete
Mas poucos me deram um apoio moral
Se eu pudesse eu não seria um problema social

Eu sei que o Seu Jorge não explica tudo e até está noutra realidade, mas também não mente...

1 comentário:

Anónimo disse...

Realmente o teu chá é intrigante porque inconformado. Tem a cada trago um sabor profundo, encorpado e familiar!
Partilho essa divisão entre o que a realidade dos outros me deveria impelir a fazer e a necessidade de descanso que, parecendo sempre luxo burguês, nos permite fechar a porta aos problemas exteriores. Ninguém pede para ser “problema social”, mas existem várias formas de encarar a vida sem nos posicionarmos como vítimas. Mas que sei eu do que seria se me encontrasse enquanto “problema social”? Quem sempre foi privilegiado pela vida tem legitimidade para dar conselhos a quem sempre teve de lutar pelas migalhas que alimentaram a sua sobrevivência? Facilmente me perco nestas perguntas, e acabo quase sempre dando-me uma palmadinha nas costas e dizendo que o questionamento é, pelo menos, indiciador de uma pequena vitória sobre o alastrante cinismo existencial. Não me apazigua a consciência, mas evita as insónias. Mas temos de achar que possuimos o direito a conquistar aquilo a que chamas a "paz de casa", certo?