quarta-feira, outubro 18, 2006

Superioridades morais

Em tempos, escrevi um post sobre diferentes significados que o conceito de emancipação feminina pode vestir. Entre outras coisas, estava em causa a questão da poligamia. Afirmava, referindo-me a julgamentos morais sobre realidades africanas, que:

Para muitas feministas, a poligamia é uma das graves situações de discriminação feminina de que é cúmplice a justiça tradicional. Tenho dúvidas de que o alvo - a poligamia e a justiça tradicional - seja o mais acertado, uma vez que o problema remonta às desigualdades que começam bem antes da puberdade, no acesso à educação e, por consequência, aos recursos, que permitiriam à mulher optar por aceitar, ou não, um homem polígamo ou qualquer homem.

Acrescentava que a suposta superioridade das mulheres ocidentais deixa muito a desejar quando olhada à luz das pressões a que estão sujeitas. Entre um rol de obrigações, que vão desde a estética às competências, dizia eu que temos que ser capazes de uma vida sexual sempre activa e magnífica, ou não seremos emancipadas, que é como quem diz, na expressão que uso entre amigos e que na altura não me atrevi a usar, «temos que ter muitos orgasmos ou somos falhadas».

Nessa altura estava longe de prever o post que a Fernanda Câncio, (aliás fernanda câncio), escreveu hoje. Ao que parece, não basta quaisquer orgasmos, têm que ser à custa de facadinhas. f. começa por falar da nova série da SIC, a tal de Jura (eu estou longe desse mundo, mas como quem lê blogues sabe tudo o que não interessa, já tinha ouvido falar), e parte para a questão da infidelidade e do valor que a sociedade lhe atribui. Segundo a f. os portugueses descobriram a infidelidade. Eu pensava que essa realidade ficava no cinema francês e nas séries tipo «Venus e Apolo», mas acabo de descobrir que, também em Portugal, anda tudo fascinadinho «pela ideia de infidelidade. como se quisesse certificar que, por ali, nada é monótono, fastidioso, tristemente caseiro, cinzentamente igual. a infidelidade é apresentada como certificado de sofisticação, cosmopolitismo e elevação».

E diz a f. (eu subscrevo), que
«tudo isto, desculpem lá, é sumamente parolo e claramente subsidiário do mais estafado sistema de valores, uma espécie de rebeldia bacoca contra os ensinamentos do pároco da aldeia […] toda a gente mente, toda a gente é desleal de vez em quando, e a maioria será infiel, no sentido sexual, mais tarde ou mais cedo. é da vida. mas não é decerto motivo de orgulho, nem critério de estratificação social do género 'coitadinhos dos pobrezinhos, são tão saloios e têm tanta falta de imaginação, arroubo e tempo que não conseguem sequer ser infiéis, que vida enfadonha devem ter, sem saber o gozo que dá usar a hora de almoço para uma escapadela e chegar a casa com ar de santinha/o, como se nada se tivesse passado!'».

Este post termina com uma frase com que eu podia ter fechado o meu das emancipações: «parece-me que basear nisto uma presunção de superioridade é que é uma tristeza». Lá em cima, a superioridade ocidental residia na ideia da monogamia, que constrastava com a realidade das pobres mulheres africanas sujeitas à poligamia; no post da f. é a infidelidade que está no topo da estratíficação.

Ai, poupem-nos... aos paternalismos, estratificações por conta de com quem se dorme e superioridades morais, venham elas dos ensinamentos do padre da aldeia ou das revoltas contra os mesmos!

1 comentário:

Anónimo disse...

Uma pequena informação: a propósito da «Jura» e da publicidade com exposição descontextualizada de relações sexuais, entre outras coisas, e em horário impróprio,no dia 19 de Outubro o Conselho Regulador da Entidade Reguladora da Comunicação Social emitiu uma recomendação interessante contra a SIC e abriu um processo de contra-ordenação.